Curitiba, 7 de julho de 1991.
Meu caro João Régis
Lamento se esta revelação vier a causar-te desgosto. Tua namorada antiga, antes que a tivesses como tal, foi e continua sendo – minha noiva perpétua. De véu e grinalda, a quem devoto amor, bem o sei, um tanto incestuoso, pois ela me viu nascer de seu imo, de suas entranhas, bem ali na Praça Osório, onde as frondosas árvores de hoje, como o recordaste, eram não mais do que arbustos.
Ali, defronte ao antigo coreto, palco de tão gostosas retretas da banda da Policia Militar, vim ao mundo com a residência dos Miloszewski, na esquina de Voluntários da Pátria e, à direita, com a dos Maravilhas.
Noiva viçosa e fagueira, desenganadamente provinciana, nas manhãs de inverno, se despojava de véus tênues e brancos de sua gala nupcial e se fazia desnuda e atrevida aos primeiros raios do sol.
A memória da infância traz-me de volta os seus aromas e, aos meus ouvidos, os sons mesclados do bonde elétrico e amarelíssimo da Companhia Força e Luz que, após rápida parada, disparada pela curva, rumo à travessa que hoje chamamos de Luiz Xavier, de permeio, o pregão cantante das polcas, à boleia de suas carroças, a chamarem pelas freguesas certas para a compra das hortaliças, frangos, ovos e frutas.
De quando em vez, o roncar dos “possantes” bólidos da época – e os distinguíamos todos, ou quase todos – dentre os Chevrolet Ramona, os Ford Bigode, os Studebakers, os Overland, os Opel e aquela incrível “baratinha”, que soava a buzina magnética com o nome de sua dona – Di-di-Cai-llet!
Majestoso espetáculo, aquele que se armava ao longo da face sul da praça, com o desfile dos préstitos funéreos, com o esquife transportado em carruagem negra, vinhetada em adornos de ouro, tirada por três ou quatro parelhas de animais, também negras e tangidos por um cocheiro de filme inglês, ataviado de fraque, solene e pomposo e grave, como o exigiam as circunstâncias.
A pé, em marcha lenta, os familiares e amigos enlutados, em visão que, hoje, identifico como muito parecida com aquelas da ária dos romeiros da Tanheuser. A morte tinha, então, uma dignidade que nós perdemos para sempre.
Mas, a vida da criança que fomos naquela Curitiba, de acanho, talvez ainda aí esteja. Não mais com a mesma feição, é claro. Já agora, não há como pregar as peças cruéis que impingíamos ao guardião da praça, que nos afugentava, a pular com uma só perna, estrinando-se na muleta, que brandia como se fora um florete; não mas as sessões “pão-duro” do Cine Palácio, com os seriados de Buck Jones, Tom Mix, o “Circulo Árabe”, os filmes de combate aéreo, tudo, com a inclusão de pacotão de pipocas e a entrada” por uma única moeda de quatrocentão (quatrocentos réis, acredite se quiser).
E as sessões do Cine Theatro Avenida, com suas frisas e balcões, poltronas de veludo e o recheio do creme da sociedade local. Damas e senhoritas, no rigor da moda mais soberba, que davam as costas para o palco nos intervalos, e se deixavam contemplar, por sisudos varões contidos por suas caras-metade, ou jovens a la Clark Gable, ou Raul Roulien.
As memórias refluem e se intimizam. Adentram a velha casa da Praça Osório, 581, ao encontro dessa silhueta tão cara e ausência tão sentida, desta mulher pequena de porte, gigante de alma, que, menina ainda, cruzou o Atlântico ao encontro do noivo prometido, Lourenço, o mestre-escola da colônia de Tomaz Coelho.
Maria era o seu nome, “Babutcha” como a chamavam os seus netos, bisnetos, parentes e amigos. Maria, santíssima como aquela que venerava, todas as manhãs na primeira missa da Igreja de Santo Estanislau e que partiu, sem estertores, doce e meiga, a dormir, sem que a alguém tivesse em vida pronunciado o mais remoto queixume. A sua cabeceira, pode-se-ia ouvir o murmúrio do vale inglês a declamar o solilóquio – to sleep, to die, perchance to dream…
E, de repente, a volta à Curitiba da criança que se convertera no adolescente, no piá do Pedro II, que nas férias, retornava ansioso aos seus pagos, à Rua XV, com seu footing tradicional, as rodas de conversa, que se armavam, de forma corporativa, diante da Casa Cosmos (seria ali o bivaque dos militares da 5a Região?), ou nos umbrais da casa de casimiras do Abreu, ou, ainda, no cenáculo dos Desembargadores e magistrados na Chignone e o encontro com novos amigos.
E a aventura e a iniciação do esporte – o marumbismo. O entusiasmo e as sortidas “heroicas”, na companhia do Lineu Hoffman, do Stamm, do Seifert, dos primos Fernando, o “Cipó”, e Roberto, o “Vagalume”, as incursões pela Ponta do Tigre, Esfinge, Abrolhos e Olímpio. Morumbiii, pessoal! E lá íamos nós, à conquista das pontas mais altas do Paraná.
As noites de fins de semana, cuidávamos de outras conquistas, não menos importantes – as reuniões da Guairacá, os papos longos com algumas figuras brilhantes, como o “Conde de Salamanca” e o “Duque”, que viria a ser mais tarde, o vitorioso presidente da Companhia Vale do Rio Doce e Ministro das Minas e Energia e – é claro, com inevitável corte de chatos militantes, que sempre os houve em qualquer cidade que se preze.
Já na virada da hora zero, o Norte era o Cassino do Ahú, quando os niqueis tilintavam, havia sempre a esperança de uma aventura louca com uma das girls do ballet. Para isso, entretanto, era preciso fazer-se vigília até 3 ou 4 horas da madrugada, que as virtuosas damas não lograram dispensa antes disso.
E, logo, logo, o retorno a Curitiba, do bacharel que formara no Rio e volvera as suas origens, para fazer-se promotor em Sengés, Rio Negro, Wenceslau Braz e Londrina. E, afinal, Curitiba, já casado e professor da Faculdade de Direito fundada por Milton Vianna.
A reserva de boemia não se esgotaria. Assumiria, apenas, novas feições. Após as aulas, os “papos” intermináveis com os alunos, na Boca Maldita (que à despeito do nome, era, ainda, território de respeito e destituído de riscos para que os que a frequentavam).
Pudera! Nessa época, a palavra sapatão tinha o excluso significado de calçado masculino de tamanho grande e as jovens não usavam sandalinhas, mas pantufas.
Havia, é certo, o baile dos enxutos, no Opera Rio, mas, a fauna bizarra ainda não havia invadido as ruas, na frenética disputa do “ponto” com profissionais do amor. E não se falava, ainda, de AIDS, que, em nossos dias, juntamente com a cólera já está levando muito nissei e sansei a só comer sashimi…. com camisinha de Vênus.
Quanta saudade desta velha Curitiba, que se faz sempre jovem e radiosa, alegre e soturna, às vezes, a ponto de dizer o Jamur Júnior que não contamos com um milhão e meio de habitantes, mas com quase dois milhões de sobreviventes.
Viver em Curitiba, é senti-la, muita mais do que pensá-la. É desfrutar deste céu azul e prata, que na imagem do poeta, nos faz sonhar e orar e cantar. É ter um certo orgulho deste frio besta, destes dias de quatro estações, é ser desconfiado e muito cético, é querer preservar a província, teimar que continue verde, limpa e decente, para que não se dispa do mistério do vampirismo de Dalton Trevisan e da autofagia, nosso maior pecado, que nem a entronização do Semeador em nosso escudo logrará excomungar.
Praza aos céus esteja eu errado.
Amém.
Des. EROS N. GRADÓWSKI (in memorian)
Ex-Procurador Geral da Justiça do Estado
Ex-Diretor do Colégio Estadual do Paraná e da Universidade Católica do Paraná
Desembargador do Tribunal de Justiça desde 1979.