Curitiba, 29 de maio de 1988
LUIZITA é uma mulher forte, extremamente segura de si e de seus atos. Atuando há 30 anos na área social, com vastíssima experiência no campo, vem recebendo continuamente prêmios e honrarias por seu eficiente desempenho. É também integrante do Clube Soroptimista Internacional onde defende com garra os direitos da mulher. Esta é Luizita.
IZZA – Você é uma mulher que certamente tem muito o que contar. Para termos uma visão mais ampla, conte-nos desde o início.
LUIZITA – Eu comecei minha carreira na Secretaria do Trabalho e Assistência Social, com uma estrutura de trabalho para o menor do Estado do Paraná. Fiz parte de comissões e planos de execução e criação do Instituto de Assistência ao Menor, onde se agrupavam antigamente todos os menores do Paraná. Atuei na organização porque no momento havia muita desorganização, eram verdadeiros depósitos. Iniciamos um trabalho de seleção e da orientação com as escolas, com equipagem pessoal, reformulação de prédios, etc.
Então comecei minha carreira há trinta anos atrás na Secretaria do Trabalho e Assistência Social, e depois, com a criação do Instituto de Assistência ao Menor, passei para lá. Também no Instituto de Recuperação de Surdos, que na época era uma instituição que se dizia para surdos, mas que, na realidade, tinham sido colocados todos os menores em condições de marginalização, deficiências, psicopatia, etc. Os diferenciados ficaram conosco. Na ocasião, tínhamos que fazer um esforço tremendo iniciando quase que individualmente, porque não existia trabalho nenhum para excepcional, para clientela diferenciada. Assim nós tivemos que nos aprimorarmos tecnicamente, quase que como autodidatas para podermos enfrentar uma série de problemas.
IZZA – O que foi mais chocante para você nesta época?
LUIZITA – Foi o Canguiri, que era uma instituição para delinquentes, onde vi menores em um verdadeiro campo de concentração, pois era um cercado, vamos dizer, de cinquenta por cem metros quadrados de arame farpado. Estavam seminus, ali faziam suas necessidades, ali eles comiam, andrajosos numa noite de inverno. Foi realmente a cena mais tenebrosa que vi em minha vida, e foi isso que me fez de repente voltar-me para essa área social, sair de minha vidinha boa, confortável, arregaçar as mangas e começar a trabalhar com uma clientela que precisava de auxílio.
Como era um trabalho de poucos elementos naquela época, eu fui envolvida em quase todos os programas do menor, e dali em diante, fui me aprimorando. Comecei por baixo, aprendendo gradualmente e fui galgando carreiras, tudo através de trabalho propriamente dito, até que cheguei a ser diretora do Centro de Reabilitação Alcindo Fanaya Júnior. Batalhamos por uma entidade nova. Conseguimos, e hoje ela é conhecida no mundo todo como uma das melhores da América latina. Depois dirigi o Centro de Reabilitação Adeodato Volpi para deficientes mentais profundos, onde só tive tempo de atuar na área de Bem-Estar Social dando condições melhores para esses doentes mentais profundos, e quando iniciei o “Programa Nosso”, um programa inovador, em estudo, houve mudança de governo e eu fui retirada da direção. Fiquei somente com o Centro e Reabilitação Alcindo Fanaya Júnior.
Posteriormente saindo deste centro, pedi minha aposentadoria, pois não me adaptei às novas normas sociais da linha do novo governo. Achei que voltaram a trinta anos atrás, coisas que eu já havia passado. É aquela velha estória: “Não vou assistir o filme de novo”. De repente eu ia a reuniões de técnicos e era a única diretora que permanecia porque eu pertencia ao partido, o restante foi todo afastado. Não foi visto se o trabalho tinha sido ou era bom. A questão era: isso é passado, vamos riscar tudo que eles apresentaram como inovações. Eram coisas tão arcaicas que eu acabei participando de reuniões com técnicos em que eles sentavam e colocavam suas inovações e eu apenas identificava a data, 1945, 1950 e comecei a virar uma enciclopédia ou tipo o “Antigo Testamento” e comecei a me sentir mal porque ninguém sabia de nada ou tinha qualquer experiência. Davam referencial de tudo e eu decidi não ficar.
Acho que a experiência é que vale. Fiquei uma temporada sem atuação profissional, mas não conseguiu. Entrei para o Clube Soroptinista, mas, nesse ínterim me ocupei: fui eleita presidente, fui batalhar pelos direitos das mulheres, que é a primeira norma de nosso clube, inclusive já havia ganho o Prêmio Internacional em 1974 e depois concorri ao outro Prêmio Internacional com esse trabalho que fiz com crianças surdas. Voltando atrás, eu já era sócia, houve um Congresso Internacional aqui em Curitiba do qual eu fui organizadora e no qual recebi honras, etc. por isso, e logo apôs o evento, fui eleita presidente do Clube, daí eu deixei o direito das crianças, o direito do excepcional e parti para a luta das mulheres
IZZA – E como é essa luta?
LUIZITA – Temos uma federação que envolve clubes do mundo todo, interligados, porém exclusivamente de mulheres. Trabalhamos em comunidade, e temos mais de vinte programas a realizar. O nosso setor não é propaganda contínua, é uma prestação de serviços, um trabalho calado de melhoria da condição intelectual da mulher.Batalhamos pela melhoria da condição intelectual dela, que tenha condições e conhecimento para que possa enfrentar suas batalhas, seja mulher de nível intelectual baixo, médio ou alto. A maioria realmente desconhece sua condição perante leis e sociedade.
Ela geralmente não é consciente do que representa dentro do seu espaço. Eu sou Chairman de liderança da América Latina e a proposição é esta: que mais líderes surjam na comunidade, mais mulheres apontem em cargos de chefia, assumindo postos intelectuais para ajudarem às outras. O nosso lema é trabalharmos em função disso. E tudo isso funciona, pois vim recentemente de Porto Stroessner onde houve um Congresso com diversos trabalhos premiados. O clube aqui de Curitiba realizou todos os pedidos da Federação. Demos prêmios ótimos aos jovens e oportunidade para mulheres que quiseram refazer sua carreira, seus estudos.
IZZA – Então você parou por aí?
LUIZITA – Não, Roberto Requião, nosso prefeito já me conhecia porque eu já havia trabalhado com seu irmão no programa de deficientes e me convidou para dirigir a Frei. Uma vila, uma cidadezinha de sessenta e quatro alqueires com a finalidade de reabilitar homens num estado total de marginalização. Há todos os tipos de homens lá dentro, maiores de dezoito anos. Uma unidade aberta, perto da Vila de Campo Magro, em Almirante Tamandaré. Esses homens são arrecadados na rua e principalmente no inverno e o número aumenta gradualmente. Lá eles trabalham, tenho uma equipe técnica muito boa, assistentes sociais, psicólogos, médicos terapeutas. Oitenta por cento é alcoólatra. Em função de frio, fatores emocionais que interferem, vamos supor, a continuidade de perdão, dentro de nossa sociedade.
Às vezes, vêm em busca de outra vida e chegando aqui são roubados, não têm para onde ir, não encontram emprego e não têm nenhuma estrutura para viver na zona urbana e, de repente ficam vagando pelas ruas. Vão lá, fazemos uma temporada, e em muitos casos, nós os devolvemos para a zona rural, quando vemos que não conseguiu sobreviver na zona urbana. Desenvolvemos um trabalho maravilhoso, único no país, empolgante, porque se chega uma pessoa de fora, é sempre possível que se assuste com a aparência deles, mas com o passar dos dias, eu poderia contar estórias fantásticas. Dali sairiam livros fabulosos, inclusive de homens que caíram na vida e que antes tinham posses e foram levados para a sarjeta. Devido ao alcoolismo, perderam família, e tudo o mais e ficaram a zero. São pessoas sofridas, de toda a espécie e isso me dá muita empolgação porque de repente eu comecei a gostar deles, a amá-los e dar esperança que é o que eles não tinham mais.
Quando lá cheguei, mais parecia sala de espera do inferno; eles de cabeça baixa, desanimados, já não acreditando em mais nada. Começamos a fazer um trabalho, eu e minha equipe. O início foi dar esperança a alguém para lutar, ajudar, dar forças, mostrar um caminho para a batalha e principalmente opções. Muitos voltaram para suas casas, estão com a família, pagaram sua terrinha, começaram a levá-la e nos escrevem dizendo estarem bem, juntamente com a família. O fator maior que os fazia não retornarem ao lar era a vergonha. “Como é que eu vou me apresentar depois de sete ou oito anos desaparecido?” e começávamos a mostrar as responsabilidades, fazer ver a eles a importância da volta. Desenvolvo esse trabalho com muito amor e muita luta porque sabemos que atualmente a parte financeira está dificílima e temos capacidade de alojamento até para 500 homens. O limite é de 18 a 56 anos. Temos alguns bem idosos que não podemos mandar embora, uma vez que vivem lá há mais de vinte anos.
Eu poderia mandar para asilos ou para cidade porque não saberiam como viver aqui e também, muitos são alcoólatras crônicos e já estão em fase de deficiência, e principalmente não seria recomendável mudarem de habitat, pois poderiam morrer antes do tempo. Já estão em seu ambiente, vivem tantos anos lá, têm aquela vidinha, amigos. Há um grupo também de deficientes mentais que há muitos anos mora lá, produzem, trabalham, dentro da eficiência deles, mas fazem alguma coisa, e há também os psicopatas. Atualmente um dos problemas maiores do Paraná e talvez do Brasil é o problema da doença mental. O trabalho ambulatorial é para inglês ver, porque esses homens vão para a rua e depois vêm para nós. Então existe uma porção de psicopatas lá dentro que não temos estrutura para atender. Agora não aceitamos mais, os que estão. Estamos tentando dar uma colocação adequada, com atendimento hospitalar completo, medicamento, tratamento, terapia, etc, e não estamos conseguindo, por que lá na FREI não estamos prontos para a psicopatia e temos casos gravíssimos de homens perigosos que têm que viver à custa de medicamentos.
IZZA – Qual é o primeiro passo para um trabalho de reabilitação?
LUIZITA – Qualificação de clientela, separar o joio do trigo porque enquanto estiver misturado, é escola para problemas maiores e piores. No caso da FREI, os deficientes eram judiados, faziam horrores. Separei por alojamentos. Alojamento I, só deficientes, Alojamentos II e III, não alcoólatras, porque pessoas que não bebem, não tem que aguentar bêbados; Alojamento IV, os que são apáticos, etc., e Alojamento VI e VIII os que têm problemas de agressividade e o Alojamento V, os que fizeram tratamento de alcoolismo e lá estão para fazer reforço e testar se ficam bem no meio dos que bebem. Lá ficam um ou dois meses. A partir do momento que a clientela é separada, e se começa a desenvolver o trabalho assim, ele começa a aparecer porque na mistura não se consegue nada, nunca. Lá a lei é rígida: agressão, não pode haver; e quem não respeita, tem que sair. É a lei maior, e eles não querem sair porque na FREI há comida. Eles produzem e têm direito a comer o que produzem. A alimentação é substancial: verduras, saladas, carne, feijão, arroz, o trivial, mas completo. Eles têm café, chá, temos panificadora, criação de porcos, galinha, coelho, peixes, etc. O alojamento é limpo e a roupa também. Eles são livres.
IZZA – Muitos se reabilitam?
LUIZITA – Nós temos um Centro de Triagem aqui na cidade que recolhe os homens. Faz a seleção dos casos, e como nosso objetivo é a reabilitação de homens, pegamos os que podem ser recuperados, por exemplo, os alcoólatras e a parte de reabilitação social. Tentamos com o nosso trabalho, tirar esses homens da rua e dar condições para que sejam elementos produtivos para o país. Não existe tempo estipulado para isso, porque cada indivíduo reage de uma forma. Cada caso é um caso a ser analisado.
IZZA – Como foram essas batalhas?
LUIZITA – As dificuldades e os preconceitos existem sobre a mulher separada. Fiquei sabendo de coisas que me estarreceram: imagine que em certos edifícios não alugam apartamentos para mulheres separadas. A dificuldade de se impor, a respeitabilidade como valor, porque a primeira imagem que ela dá, conforme nossa cultura, é de ser uma mulher disponível. Sei que é uma luta constante, porque sou divorcia- da há sete anos e tive que me impor perante até as próprias mulheres, porque elas também marginalizam a mulher separada, que vira rival, a que pode estar olhando para o marido delas, da amiga. Atualmente, em seu próprio clube, sinto que já existe uma visão diferente. Ela continua sendo o elemento que tem suas necessidades, mas isso não quer dizer que ela seja disponível só pelo fato de ser separada. Converso com muitas delas e sinto que a maior preocupação são os homens que ela irá ter.
Verifiquei também que, de acordo com o nível intelectual das mulheres, se torna difícil encarar novas responsabilidades, mas isso não é culpa delas que não foram ensinadas nem preparadas para isso, assim como mulheres mais velhas que também não tiveram essa base para fazerem alguma coisa para sobreviver, e em consequência disso, elas ficaram completamente perdidas, sem rumo. Tudo isso além de batalharem com o preconceito bárbaro da sociedade. É muito difícil assumir as responsabilidades, fazer o papel de pai e mãe, assumir os encargos. É uma ação contínua. Nessas batalhas, a mulher tem que se impor, não correr, não se envergonhar. Dizer “eu sou” e assumir é uma eterna luta de respostas e uma eterna observância de atos. É uma mulher julgada 24 horas por dia, enquanto as casadas não. O interessante é que existem casadas que pintam, bordam, fazem horrores e não são julgadas enquanto que, algumas separadas que não fazem nada, são severamente observadas. As pessoas devem ver a situação por outro prisma.
IZZA – E para finalizar, o que você gostaria de acrescentar?
LUIZITA – Eu diria o seguinte: os valores são descartáveis, a mola que impulsiona é a financeira, mas em uma época eu já pertenci a um grupo idealista onde fidelidade, honra, solidariedade, eram os valores primeiros, dizíamos, “Alguém tem que fazer alguma coisa por isso”, e fazíamos. Agora se eu disser as mesmas palavras, olho ao redor e não vejo ninguém. Se o mundo tivesse mais alguém acho que estaria bem melhor. É isso que precisamos.