No ano de 1991, foi lançado o primeiro livro “Cartas a Curitiba”. Nele podemos ler lindas cartas escritas com muito amor representando o pensamento da época. São relíquias que fazem parte da Memória Curitibana. Várias personalidades marcam presença.
Infelizmente alguns já se foram mas deixaram a sua homenagem a nossa Curitiba. É o caso dessas duas cartas que lerão a seguir do Advogado, Professor titular de Cadeira de Direito do Trabalho na UFP e jornalista João Régis Fassbender Teixeira (in memoriam). Carta esta que mereceu resposta do Desembargador Des. Eros N. Gradowski ,(in memoriam). Ex-Procurador Geral da Justiça do Estado. Ex-Diretor do Colégio Estadual do Paraná e da Universidade Católica do Paraná. Desembargador do Tribunal de Justiça.
Curitiba, 23 de junho de 1991.
Falar de Curitiba é dizer da namorada antiga. Desejada – mesmo. Que ao contrário das mulheres de todas as vidas, não envelheceu, não engordou, nada mudou. Ao contrário, em sentido invertido dos meus cabelos brancos, hoje maior e quase que absoluta, a cada dia que passa fica mais jovem, faceira, brejeira, apetecível… mais, hum…. amada! Na forma e na métrica da que jamais foi possuída por quem a canta em prosa, verso ou soletra em pauta musical. E assim, não levada ao tálamo, muda de século sendo a melhor, por jamais usufruída até o fim, completamente, sem retorno…
Curitiba feminina, de lábios cheios; bonita e debutante. Virgem?… talvez, mas não com certeza. Matreira, vestida sem timidez, mas sem esconder nada, mostrando de leve o todo que tem; com o sabor da fantasia escondido. De pecado só prometido: para depois do amanhã; quem sabe em Janeiro (ou fevereiro), na descida da praia, como mote e remote de que “amor de praia não sobe serra”…
Olho para trás: e é difícil, mesmo, encontrar fato importante de minha vida que não esteja entrelaçado com a minha menina-moça; mulheraça; toda desejada, jamais possuída…
A Curitiba de meus primeiros anos, com a Praça Osório de árvores então baixas, quase que recém-plantadas. De onde saiam, tímidas, envergonhadas, as ruas Comendador Araújo e Vicente Machado, recém calçadas de irregulares e escuros paralelepípedos…
A primeira casa, ali no canto da Praça (onde hoje está o Edifício Kwasinki…): sobradinho de andar único; embaixo, duas lojinhas: uma onde era o consultório odontológico de Doutora Lizete, a única dentista de quem jamais tive medo e a quem amei; e que hoje está casada com o gordíssimo e bom Rigotti Alice, também dentista. E que… casando com a colega, tirou da mão dela o Boticão, impondo condições de só… esposa!
Na outra os primeiros da família Chamecki, judeus de boa cepa e quem sabe, tenham sido os primeiros a me fazer querer bem, amar mesmo, o povo nato na Terra Prometida… Dali saia, todas as tardes, o menino com o cabelo duro de “Gumex”, arrumado por Dona Hilda, então mocinha e noiva do Paraná, em direção à “Escola de Aplicação”, bem pertinho, no começo da Emiliano Perneta, então totalmente doméstica cheia de moradias nobres enfeitadas…
Depois Curitiba – Batel. Rua Coronel Dulcídio e a Escola Primária da fantástica Dona Branca Miranda. Em curso fundamental que se baseou minha vida: cheguei ao exame de admissão no Colégio Santa Maria até falando francês! Pronto para o Ginásio, que não foi mole.
Com a rua XV de Novembro dando mão bairro centro; carrões de Praça “daquele” tamanhão, incluindo um Lincoln Continental com… doze cilindros (a gasolina era franca, forte e barata: vinha da América em galões, em latas).
Deste Santa Maria do tempo do irmão Luiz Vicente, espanhol notável (nascido em Vitória!), que acompanhava “seus meninos”, seus alunos até a prova oral das diversas faculdades; e batia dedo com Examinadores pelos “seus meninos”, seus apelidos, suas crias… Mais os irmãos Cirineu Alvarenga, Rubens Modesto, Raul Clemente. Sem falar no irmão Ruperto (o camelô); sem dizer do irmão Albano. De todos só o último esteve presente em minha, na nossa Curitiba até pouco tempo atrás! E os outros, em que nuvem, em que patamar do além estarão, hoje? Estarão??…
Gente de Curitiba. Do jornal O DIA, onde entrei em 1948, com doze anos de idade, Carteira assinada e tudo… Para privar com Ivar Feijó, Saul de Quadros, Barros Cassal… o “Repórter Galo”, da página policial, o único jornalista do mundo (que existiu, sem dúvida, existiu mesmo, tem provas), e que…. não sabia escrever! Nem a mão, nem a ninguém! Mas, que reportaço!
Curitiba da PRB2, depois da Guairacá que dominavam, sozinhas, o mercado da cidade. E onde também estive na produção do BOM DIA PARANÁ, junto com um jovem magérrimo, verdadeira “sombra de gilete”, que se chamava João Feder, um portento na redação, pioneiro notável na arte de fazer notícias.
E foi minha Curitiba que me fez acadêmico de Direito na mesma escola onde meu pai já era Mestre; e na qual tornei-me professor, com muito orgulho.
Curitiba notável que enche meu peito de orgulho e que de quando em vez, já por último cada dia mais frequentemente, faz embarcar meus óculos com repetidas, seguidas, continuadas emoções. Regininha (hoje muito maior que eu no jornalismo); Júnior (ganhou de mim na Advocacia de trincheira). Kitty, levantou vôo, está na América do Norte, gerente de um dos maiores Hotéis de Orlando, cadeia internacional de hospedarias…).
E por derradeiro, mas não esquecidos, Napoleão Neto e Allan Domício… todos filhos de Curitiba, netos de Curitiba, bisnetos de Curitiba…
E é esta Curitiba que vai abrigar, cedo ou mais tarde, o que sobrar deste seu apaixonado filho, irmão, amante, amigo… adorador, quem sabe. Mas eternamente namorado, enredado, sobretudo feliz e muito grato.
Curitiba que não atinge nunca a maturidade. Que continua menina. Enfeitada com muito amor pelo Jaime Lerner (de quem eu deveria ter ciúme, mas não tenho…). Com o melhor transporte do País. Com o melhor sistema de vida da América Latina. Com seus Parques, com suas luzes, com seu verde.
Curitiba de namorados tantos, bons ou maus, certamente mais abeis do que eu. Dos Ritzmann, dos Loureiro, dos Leão e dos Muller e Mueller… Dos Thá e Sperandio, dos Zilli – que eram de Morretes e não são mais: grandões, desajeitados, cheios de música e de vida. Dos Requião e dos Wisowski. Dos Piecknick e dos Wyatt. Dos Maranhão e dos Gradowski. Dos Ferreira do Amaral, dos Monastier!
Meu Deus, tanta gente – e quantos estão faltando neste encerramento de coluna. Que viveram comigo. Que amaram comigo. Que sonharam e cresceram comigo! Curitibanamente feliz….
Há mais o que dizer. Está faltando engenho e arte. E força – que saudade também mata.
E como mata, gente!
É isto mesmo: Curitiba – eu te amo, muito… e já há muito tempo! …
João Régis Fassbender Teixeira
Curitiba, 7 de julho de 1991.
Meu caro João Régis
Lamento se esta revelação vier a causar-te desgosto. Tua namorada antiga, antes que a tivesses como tal, foi e continua sendo – minha noiva perpétua. De véu e grinalda, a quem devoto amor, bem o sei, um tanto incestuoso, pois ela me viu nascer de seu imo, de suas entranhas, bem ali na Praça Osório, onde as frondosas árvores de hoje, como o recordaste, eram não mais do que arbustos.
Ali, defronte ao antigo coreto, palco de tão gostosas retretas da banda da Policia Militar, vim ao mundo com a residência dos Miloszewski, na esquina de Voluntários da Pátria e, à direita, com a dos Maravilhas.
Noiva viçosa e fagueira, desenganadamente provinciana, nas manhãs de inverno, se despojava de véus tênues e brancos de sua gala nupcial e se fazia desnuda e atrevida aos primeiros raios do sol.
A memória da infância traz-me de volta os seus aromas e, aos meus ouvidos, os sons mesclados do bonde elétrico e amarelíssimo da Companhia Força e Luz que, após rápida parada, disparada pela curva, rumo à travessa que hoje chamamos de Luiz Xavier, de permeio, o pregão cantante das polcas, à boleia de suas carroças, a chamarem pelas freguesas certas para a compra das hortaliças, frangos, ovos e frutas.
De quando em vez, o roncar dos “possantes” bólidos da época – e os distinguíamos todos, ou quase todos – dentre os Chevrolet Ramona, os Ford Bigode, os Studebakers, os Overland, os Opel e aquela incrível “baratinha”, que soava a buzina magnética com o nome de sua dona – Di-di-Cai-llet!
Majestoso espetáculo, aquele que se armava ao longo da face sul da praça, com o desfile dos préstitos funéreos, com o esquife transportado em carruagem negra, vinhetada em adornos de ouro, tirada por três ou quatro parelhas de animais, também negras e tangidos por um cocheiro de filme inglês, ataviado de fraque, solene e pomposo e grave, como o exigiam as circunstâncias.
A pé, em marcha lenta, os familiares e amigos enlutados, em visão que, hoje, identifico como muito parecida com aquelas da ária dos romeiros da Tanheuser. A morte tinha, então, uma dignidade que nós perdemos para sempre.
Mas, a vida da criança que fomos naquela Curitiba, de acanho, talvez ainda aí esteja. Não mais com a mesma feição, é claro. Já agora, não há como pregar as peças cruéis que impingíamos ao guardião da praça, que nos afugentava, a pular com uma só perna, estrinando-se na muleta, que brandia como se fora um florete; não mas as sessões “pão-duro” do Cine Palácio, com os seriados de Buck Jones, Tom Mix, o “Círculo Árabe”, os filmes de combate aéreo, tudo, com a inclusão de pacotão de pipocas e a entrada” por uma única moeda de quatrocentão (quatrocentos réis, acredite se quiser).
E as sessões do Cine Theatro Avenida, com suas frisas e balcões, poltronas de veludo e o recheio do creme da sociedade local. Damas e senhoritas, no rigor da moda mais soberba, que davam as costas para o palco nos intervalos, e se deixavam contemplar, por sisudos varões contidos por suas caras-metade, ou jovens a la Clark Gable, ou Raul Roulien.
As memórias refluem e se intimizam. Adentram a velha casa da Praça Osório, 581, ao encontro dessa silhueta tão cara e ausência tão sentida, desta mulher pequena de porte, gigante de alma, que, menina ainda, cruzou o Atlântico ao encontro do noivo prometido, Lourenço, o mestre-escola da colônia de Tomaz Coelho. Maria era o seu nome, “Babutcha” como a chamavam os seus netos, bisnetos, parentes e amigos. Maria, santíssima como aquela que venerava, todas as manhãs na primeira missa da Igreja de Santo Estanislau e que partiu, sem estertores, doce e meiga, a dormir, sem que a alguém tivesse em vida pronunciado o mais remoto queixume. A sua cabeceira, poder-se-ia ouvir o murmúrio do vale inglês a declamar o solilóquio – to sleep, to die, perchance to dream…
E, de repente, a volta à Curitiba da criança que se convertera no adolescente, no piá do Pedro II, que nas férias, retornava ansioso aos seus pagos, à Rua XV, com seu footing tradicional, as rodas de conversa, que se armavam, de forma corporativa, diante da Casa Cosmos (seria ali o bivaque dos militares da 5a Região?), ou nos umbrais da casa de casimiras do Abreu, ou, ainda, no cenáculo dos Desembargadores e magistrados na Chignone e o encontro com novos amigos.
E a aventura e a iniciação do esporte – o marumbismo. O entusiasmo e as sortidas “heroicas”, na companhia do Lineu Hoffman, do Stamm, do Seifert, dos primos Fernando, o “Cipó”, e Roberto, o “Vagalume”, as incursões pela Ponta do Tigre, Esfinge, Abrolhos e Olímpio. Morumbiii, pessoal! E lá íamos nós, à conquista das pontas mais altas do Paraná.
As noites de fins de semana, cuidávamos de outras conquistas, não menos importantes – as reuniões da Guairacá, os papos longos com algumas figuras brilhantes, como o “Conde de Salamanca” e o “Duque”, que viria a ser mais tarde, o vitorioso presidente da Companhia Vale do Rio Doce e Ministro das Minas e Energia e – é claro, com inevitável corte de chatos militantes, que sempre os houve em qualquer cidade que se preze.
Já na virada da hora zero, o Norte era o Cassino do Ahú, quando os niqueis tilintavam, havia sempre a esperança de uma aventura louca com uma das girls do ballet. Para isso, entretanto, era preciso fazer-se vigília até 3 ou 4 horas da madrugada, que as virtuosas damas não lograram dispensa antes disso. E, logo, logo, o retorno a Curitiba, do bacharel que se formara no Rio e volvera as suas origens, para fazer-se promotor em Sengés, Rio Negro, Wenceslau Braz e Londrina. E, afinal, Curitiba, já casado e professor da Faculdade de Direito fundada por Milton Vianna.
A reserva de boemia não se esgotaria. Assumiria, apenas, novas feições. Após as aulas, os “papos” intermináveis com os alunos, na Boca Maldita (que à despeito do nome, era, ainda, território de respeito e destituído de riscos para que os que a frequentavam).
Pudera! Nessa época, a palavra sapatão tinha o excluso significado de calçado masculino de tamanho grande e as jovens não usavam sandalinhas, mas pantufas. Havia, é certo, o baile dos enxutos, no Opera Rio, mas, a fauna bizarra ainda não havia invadido as ruas, na frenética disputa do “ponto” com profissionais do amor. E não se falava, ainda, de AIDS, que, em nossos dias, juntamente com a cólera já está levando muito nissei e sansei a só comer sashimi…. com camisinha de Vênus.
Quanta saudade desta velha Curitiba, que se faz sempre jovem e radiosa, alegre e soturna, às vezes, a ponto de dizer o Jamur Júnior que não contamos com um milhão e meio de habitantes, mas com quase dois milhões de sobreviventes.
Viver em Curitiba, é senti-la, muita mais do que pensá-la. É desfrutar deste céu azul e prata, que na imagem do poeta, nos faz sonhar e orar e cantar. É ter um certo orgulho deste frio besta, destes dias de quatro estações, é ser desconfiado e muito cético, é querer preservar a província, teimar que continue verde, limpa e decente, para que não se dispa do mistério do vampirismo de Dalton Trevisan e da autofagia, nosso maior pecado, que nem a entronização do Semeador em nosso escudo logrará excomungar.
Praza aos céus esteja eu errado.
Amém.
Des. Eros N. Gradówski