É fácil amar uma cidade que tem em suas ruas, esquinas, prédios e parques parte de nossos sonhos, vitórias, derrotas, amigos, inimigos, afetos e desafetos, nossos vivos e nossos mortos queridos. Tudo enfim que nos faz o que somos.
Ferreira Gullar, poeta de uma outra cidade, disse o que sinto: “O homem está na cidade / como uma coisa está em outra / e a cidade está no homem / que está em outra cidade…”
Curitiba é a cidade tão antiga quanto minhas mais velhas lembranças: brincando de vampiros com o irmão, sem saber que um vampiro já escrevia seus contos sobre ela que a tornariam famosa nos quatro cantos do mundo. A cidade viva, respirando, o grupo escolar onde decorávamos as lições, o esforço para acompanhar a sabedoria da cidade grande, muito asfalto, as luzes de Natal nas lojas, em casas visitadas por toda a população porque nelas não se economizavam pequenas lâmpadas ou criatividade desta época em que o bom velhinho ainda vinha.
As lembranças, algumas com referências materiais: o Colégio Estadual do Paraná – e eu tinha passado no exame de admissão! -, o Teatro de Bolso, onde estreei uma peça de teatro, a única como personagem central, mas inesquecível, e que revelou para o mundo uma artista de primeira cepa, Denise Stoklos, que até hoje tenho a honra de chamar amiga; o Teatro Guaíra – participei da inauguração do grande auditório, no palco como figurante no passeio da praça, na peça onde a amiga já era personagem central.
Os primeiros livros sobre política, os primeiros atos de rebeldia, artigos para o jornalzinho do colégio, uma instituição pública de alta qualidade típica daquela Curitiba, as reuniões explosivas (ou nós achávamos que fossem) das lideranças estudantis, as Livrarias Ghignone e Chain, a Universidade Federal do Paraná, onde uma vez sentei no chão, à espera de uma absurda cavalaria que nos cercou, éramos muitos sem saber se voltaríamos para casa. Voltamos, foi um susto.
As lojas de discos que faziam a trilha sonora da rua XV com os últimos lançamentos de Beatles e Rolling Stones, de Caetano e Chico, os bares e confeitarias, as lojas de roupas e de comida, as pastelarias de feira e o Ile de France, as Lojas Americanas (a nova e a velha), o Pasquale sagrado dos sábados onde víamos com inveja o Jaime Lerner ser servido de bolinhos de arroz a que só ele tinha direito.
Nada disso vale se forem apenas edifícios, e a maioria ainda resiste, o que faz valerem as lembranças são as pessoas. Os professores e colegas de colégio e universidade, primeira lição de enfrentamento do bom e do ruim, do acolhedor e do áspero, da preguiça e da ânsia de saber do mundo e de si mesmo…. Os grandes Oracy Gemba e Antônio Carlos Kraide, o fabuloso Manoel Carlos Karan e sua trupe, as atendentes de livraria que conheciam de verdade os livros que vendiam e até perdoavam algum pequeno furto (menos o Chain que era pão duro, e só de vez em quando fingia não ver), e alguns outros personagens inesquecíveis, nossos restaurantes italianos em bairros opostos e mais requisitados, os anônimos autores da banana Split e da “vaca preta” das manhãs de sábado.
O encontro com a beleza das Exatas, e no campus de área essencialmente masculina, a dureza de estudar e o orgulho de ser diferente, até descobrir que mulheres (poucas, na época) tinham todas apelidos derrisórios dados pelos colegas em defesa contra a invasão de “seu” espaço que nada pode impedir, primeira noção de feminismo. Ah, Curitiba machista, elitista, fechada em seus sobrenomes, que tem se modernizado sim, a duras penas. Seus escritores, seus poetas, seus músicos, famosos ou não, sua preocupação com as Artes, seus conjuntos de câmara familiares que perpetuam a música clássica, seu Solar do Rosário e do Barão, suas multicores étnicas e tradições preservadas têm feito com que você aprenda a ser mais acolhedora.
Só Curitiba nas feirinhas de domingo, no meio de velas, bonsais, bijuterias, quadros, incensos, carros, bolsas, sandálias, a gente pode se perder e se achar no seu clima. Tudo isto, agregado a nosso baú da memória, compõe o manual do que realmente sabemos.
Curitiba foi chamada “cidade universitária” em tempos idos, e agora faz jus à fama. Temos uma população universitária de milhares de estudantes, em centenas de cursos de dezenas de instituições. E tenho orgulho de ter tido participação como professora e gestora acadêmica na realização disto.
Nosso contista maior, e embora talvez negue, grande poeta, resumiu o doce e o amargo da cidade: “…província, cárcere, lar, Curitiba me viaja…”
WANDA CAMARGO
Engenheira Civil e Licenciada em Física. Especialista em Metodologia de Ensino e Mestre em Ciências Geodésicas. Lecionou Análise Numérica em cursos de graduação e pós-graduação na Universidade Federal do Paraná, onde exerceu também vários cargos de gestão universitária.
É autora de obras técnicas em Análise Numérica e Educação, publica regularmente artigos voltados à área educacional em jornais e periódicos. Atualmente é assessora da Mantenedora do UniBrasil Centro Universitário, e também coordenadora de projetos culturais.
